O primeiro museu do Carnaval só poderia ser criado aqui, na terra da alegria. E a festa, que antes tinha apenas endereço móvel (o trio elétrico), agora possui residência fixa. Lugar melhor não haveria de ser: a Casa do Carnaval, inaugurada pela Prefeitura nesta segunda-feira (5), está situada no Centro Histórico da primeira capital do Brasil, ao lado da Catedral Basílica de São Salvador, entre o Terreiro de Jesus e a Praça da Sé, colada no Plano Inclinado Gonçalves, tendo como testemunha das estripulias de Momo lá contadas uma inspiradora vista da Baía de Todos-os-Santos.
Antes, o imóvel abrigava a antiga Casa do Frontispício, tendo sido restaurado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para receber o museu, fruto de um investimento de R$5 milhões da Prefeitura. O desafio foi contar tanta história em quatro pavimentos: o térreo, o primeiro andar, o terraço e o subsolo. Mas, com o uso da tecnologia e da interatividade, a Casa do Carnaval consegue mais do que isso: se torna uma divertida experiência sensorial que faz um panorama, em diversos recortes temáticos, da festa que está no âmago da cultura popular, das transformações sociais e da formação da identidade de um povo.
Com curadoria de Gringo Gardia, o mesmo que comandou, também em Salvador, o projeto de implantação da Casa do Rio Vermelho – Jorge Amado e Zélia Gattai (um memorial instalado no imóvel onde o casal de escritores viveu), o museu da folia abre-alas para um passeio pela histórica do Carnaval de uma forma lúdica e bem pessoal, como é a experiência da festa para cada um. No térreo, o visitante tem à disposição uma biblioteca de livros visuais relacionados ao Carnaval, a Salvador e suas artes e tradições. Logo depois, ele é levado a percorrer vários caminhos que revelam as singularidades de uma festa tão plural, dinâmica e libertária, onde cada um se acha no direito de ser quem quer.
Origens – Após a recepção e biblioteca, o visitante acessa, ainda no térreo, a sala Origens do Carnaval, que tem capacidade para 20 pessoas e onde são apresentados os temas que compõem os primórdios da história da folia até os dias atuais. Essa sala é repleta de 200 bonecos feitos com cerâmica que representam figuras típicas de Momo na cidade, como o ambulante, o cordeiro, o policial, o filho de Gandhy e personagens conhecidos como Nelson Maleiro, Riachão, Gerônimo e Luís Caldas. Os bonecos foram feitos especialmente para a Casa do Carnaval pela artesã Cibele Sales, que antes se dedicava apenas a confeccionar, em cerâmica, representações belíssimas de baianas e de Orixás do Candomblé. Ela contou com a ajuda do filho, Gustavo Barreto, que fez as miniaturas dos instrumentos.
A cenografia desta sala mistura elementos da nobreza, como o chão vermelho e um grande sombreiro imperial no meio do teto (semelhante àqueles usados pelo Cortejo Afro), circundado por uma explosão de luzes multicoloridas. Uma grande maquete da Praça Castro Alves na parede serve como tela mapeada de um vídeo que explica o simbolismo desse espaço, o território da liberdade e da mistura famosa pelo encontro de trios, no nascimento do Carnaval contemporâneo. Cada visitante acompanha esta e as outras seis projeções em vídeo desta sala com um fone de ouvido que ele recebe ao entrar na sala. Individualmente, o visitante pode acessar qualquer uma das seis projeções.
Uma outra maquete dos circuitos Osmar (Centro) e Dodô (Barra-Ondina) é o chamariz para um outro vídeo que conta como Salvador desenvolveu uma tecnologia que permite abrigar cerca de dois milhões de pessoas durante o Carnaval sem que ocorram incidentes graves com grandes aglomerações. Aliás, isso ainda é fruto de estudos no mundo inteiro e, ao lado da logística e da gestão, são tecnologias exportadas quando o assunto é a realização de grandes eventos. O vídeo aborda ainda questões econômicas da festa, bem como a infraestrutura para que tudo ocorra normalmente.
Os outros vídeos da sala Origens do Carnaval abordam temas como a história da folia desde os entrudos até o surgimento da fantasia da baiana difundida pela Princesa Isabel, passando pelas lavagens e festejos populares; a festa das elites e do povão, vividas nos clubes e salões e nos blocos, cordões e batucadas, respectivamente, durante a primeira metade do século XX; os afoxés que homenageavam os aborígenes norte-americanos; as escolas de samba (sim, a capital baiana também teve desfile alegórico, a exemplo do que ocorre tradicionalmente no Rio de Janeiro) e agremiações de índios brasileiros.
Sala da criatividade
O segundo compartimento do andar térreo, chamado de Sala de Criatividade e Ritmos do Carnaval da Bahia, apresenta 12 vídeos sobre a diversidade, a mistura, a evolução, a irreverência e a criatividade da festa. Juntos com os vídeos, diversas vitrines mostram instalações referentes aos assuntos exibidos e também a memorabilia de instrumentos, fantasias, figurinos de celebridades do Carnaval emprestados ao museu e elementos cenográficos para imersão do visitante em cada tema.
As vitrines são visualmente divididas em ambientes de cores diferentes interligados, dando um aspecto futurista à sala. Luzes vibrantes, fitas de LED e refletores com efeitos especiais promovem a vibração da folia de som e luz. O percurso é livre pelo espaço e o visitante ouve o conteúdo dos vídeos individualmente através do fone que recebe na entrada. A capacidade máxima dessa sala é de 40 pessoas distribuídas ao longo do percurso.
Na vitrine dos trios elétricos, miniaturas feitas por artistas populares representam desde a primeira Fobica até os mais modernos veículos com tecnologia e conforto. Na vitrine do visual do Carnaval, maquetes de decorações antigas mostram a evolução e as diversas técnicas usadas pelos artistas plásticos da festa: Juarez Paraíso, Ray Vianna, J. Cunha e Alberto Pitta, personalidades que colaboraram com a construção do museu, estão entre eles. Desenhos dos artistas também integram o espaço, com a história narrada em vídeo.
O Carnaval do interior tem um espaço nessa sala, com destaque para Os Caretas de Maragogipe e Os Cães de Jacobina, que têm as fantasias reais expostas no teto. Uma escultura do Exus dos Cães de Jacobina também está lá no espaço, adornado como as festas de largo do interior baiano.
Roupas emprestadas – Um espaço central, com teto e piso espelhados, é dedicado aos cantores e cantoras do Carnaval, com suas várias fantasias e roupas icônicas. Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Carla Perez e Daniela Mercury, entre outros, emprestaram peças originais de seus figurinos e instrumentos musicais para o museu. Assim que souberam do projeto da Prefeitura de Salvador de tornar realidade o antigo sonho da cidade de ter um equipamento desse tipo, praticamente todos os artistas da música baiana, sejam os mais novos ou aqueles possuem mais tempo de trio, se colocaram à disposição para contribuir de alguma forma.
Um espaço especial é dedicado à exuberância do Carnaval afro de Salvador, com seus tecidos, planejamentos e ornamentos que remetem às origens daquele continente. Um teto feito de tecidos africanos, elaborado pelo artista plástico J. Cunha, famoso pela criação de fantasias do bloco Ilê Aiyê, entre outros trabalhos, dá uma atmosfera tribal ritualística a essa vitrine. Nela estão fantasias e roupas do próprio Ilê, do Cortejo Afro, do Muzenza, do Malê de Balê e do Olodum. Nesta vitrine também está disponível o vídeo “O Carnaval da Bahia visto pelo mundo”, que mostra a presença de figuras internacionais ilustres aproveitando ou pongando no gingado dos baianos, como Michael Jackson e Paul Simon, que cantaram ao som do batuque do Olodum, e até Charles Darwin. Afinal, a folia de Momo soteropolitana não é pop apenas aqui na boa terra.
Pau elétrico – Outro espaço é dedicado ao tambor, ao pau elétrico, às guitarras baianas e outros instrumentos do Carnaval. O teto é coberto com tambores pintados por Ray Vianna nos mesmos moldes dos primeiros instrumentos da Timbalada, também feitos pelo artista plástico que possui décadas trabalhando na folia. Essa vitrine é coberta por instrumentos usados no Carnaval e cedidos pelos artistas. O espaço conta com dois vídeos.
Outra área também coberta de espelhos e luzes refletidas e multiplicadas mostra mais três vídeos nesta sala: “Bloco de trio”, “A liberdade e a irreverência do Carnaval” e “A mistura de ritmos no caldeirão da antropofagia do Carnaval”. No final da sala, um monitor recolhe todos os fones e aparelhos usados e encaminha o visitante de volta à recepção. Mas o passeio pela história e pelas sensações da folia ainda continua e, no segundo pavimento, vai mexer com o corpo e o espírito de quem quiser brincar.
Experiência para o corpo
No primeiro andar da Casa do Carnaval, duas salas de cinema interativo com danças e ritmos complementam a visita com entretenimento para grupos de 30 pessoas por sala e por sessão. Ao comprar o ingresso, o visitante escolhe a sessão do filme que quer ver, e cada uma dura 10 minutos, com outros 5 para fotos com os ornamentos disponibilizados nos dois espaços para caracterização, pois a brincadeira precisa ser completa. Quem quiser só assistir fica no cantinho.
Ao entrar na sala, o visitante é incentivado pelos monitores a participar da dança ou da percussão de uma maneira simples. Para cada filme, a pessoa pode pegar e usar elementos para se sentir dentro da festa. Fantasias, instrumentos de percussão, mamãe-sacodes e turbantes são alguns desses objetos armazenados em estantes.
Durante os filmes, que ensinam 11 danças no total, bailarinos originários de grupos de dança conceituados se movimentam na tela ao mesmo tempo em que o monitor da sala também desempenha o papel de professor das coreografias. Entre as danças estão aquelas engraçadas, que fizeram sucesso de público e renda, a exemplo das imortalizadas por grupos como É o Tchan. Há também performances para canções executadas por Carlinhos Brown, Igor Kannário, Saulo Fernandes e Claudia Leitte, entre outros.
As duas salas possuem efeitos de luz, vento, aromas e, claro, um som de alta qualidade, com uma acústica totalmente isolada do ambiente externo. Ou seja, a experiência sensorial é total. Na sala de espera situada no mezanino deste andar, vitrines nas paredes revelam objetos e vestuários de artistas consagrados do Carnaval. E os dois espaços para o cinema interativo podem ser usados na programação cultural da Casa do Carnaval para seminários, palestras, cursos e exibição de filmes ou documentários, com cadeiras removíveis.
Terraço e subsolo
No terraço, onde há uma das mais belas vistas da Baía de Todos-os-Santos, a cenografia traz a temática das festas de largo com mobília original e ornamentos. Todo ambiente possui cores fortes e desenhos baseados nos grafismos modernistas dessas festas típicas. O teto coberto de fitas se estende até o final do terraço, possibilitando um local assombreado para as mesas ao ar livre. Um segundo plano do espaço tem a opção de lounge, com locais para sentar e mesas altas para bares volantes, com pequeno palco para pocket shows acústicos.
Já o subsolo da Casa do Carnaval possui arquivo multimídia com biblioteca especializada composta por livros e documentos em geral sobre a folia. Trata-se de um espaço voltado para pesquisadores e universitários. A visita precisa ser agendada. Assim como todo o museu, que estará em permanente atualização, o conteúdo e o material sobre a história da festa espalhados em arquivos públicos ou privados poderão ser armazenados de forma digital no subsolo para a livre utilização de pesquisadores, visto que esse é um dos objetivos da Casa: o de ser uma referência e um polo irradiador de conhecimento sobre a folia de Momo em Salvador, que, não demora, vai se tornar Patrimônio Imaterial da Humanidade.
Livro com primeiros textos
Com tiragem inicial de mil exemplares, o livro “A Casa do Carnaval – Primeiros Textos” está disponível no museu para quem deseje se aprofundar em 11 textos sobre temas que envolvem a festa, a exemplo da história, dos afoxés, dos blocos afro, mídia e mercado e da relação da folia com a cidade, que nem sempre é fácil, pois o evento mexe com a vida mesmo daqueles que não curtem a brincadeira. O livro foi organizado pelo professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Paulo Miguez, pesquisador do Carnaval.
Informações úteis
A Casa do Carnaval funciona de terça a domingo, das 11h às 19h. O ingresso custa R$50 (inteira) e R$25 (meia).
Ficha técnica
A Casa do Carnaval tem supervisão geral da Prefeitura de Salvador, através da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. A curadoria e concepção cenográfica é de Gringo Gardia, com consultoria acadêmica de conteúdo do professor da Ufba Paulo Miguez e consultoria artística sobre a festa do produtor musical Jonga Cunha. A historiadora e editora Bete Capinam participou da pesquisa e assistência de direção de conteúdo. Também foram convidados para participar do projeto os pesquisadores: Antônio Risério, Armando Castro, Caroline Fantinel, Charles Sodré, Edvard Passos, Fred Góes, Nelson Cadena, Milton Moura, Merina Aragão e Paulo Costa Lima.
Aspas
A Casa do Carnaval é para chamarmos de nossa, pois constitui-se num dos berços da identidade baiana. E na qual todos, sem exceção (até mesmo aqueles que não se regozijam no Carnaval das ruas), são bem-vindos para esmiuçar, lúdica e interativamente, um pouco mais as cores dessa cidade.
Prefeito ACM Neto
A Casa do Carnaval é um museu da cultura popular genuinamente baiana e soteropolitana. E, como acontece com essa festa gigantesca, estará em permanente construção, se reinventando sempre, ouvindo a voz das ruas. Além da parte documental, a oralidade está presente de forma muito intensa na Casa, sobretudo nos relatos daqueles que viveram e vivem o Carnaval.
O Carnaval da Bahia tem essa capacidade de mobilizar quem gosta e quem não gosta. Quem gosta se prepara para a festa em todos os sentidos. E quem não gosta tem que se organizar para ficar de fora. Ou seja, ninguém passa impunemente pelo Carnaval. E a Casa será, mesmo para quem não é folião, espaço para uma visitação, porque tem alguns dos elementos centrais que explicam o que é ser baiano.
Paulo Miguez – Pesquisador e professor da Ufba
“Eu tenho certeza que, quando alguns turistas que nunca foram atrás de um trio, que nunca entraram num camarote, que nunca seguiram uma batucada no Pelourinho, vão se emocionar quando entrar na Casa do Carnaval. É porque essa é uma história muito rica, e o aproveitamento sensorial do museu é interessante, levando as pessoas a viagens sonoras e visuais. E tão importante quanto isso será o espaço permanente de pesquisa que a Casa vai se tornar.
Jonga Cunha – Produtor musical
“O grande desafio aqui é contar essa história inteira em quatro pavimentos. Começamos mostrando a evolução histórica da festa, com documentos antigos ou mesmo através de conversas que resultaram em filmes. Mas se você tem um museu do Carnaval em que as pessoas não sentem e não participam, não funciona. Não existe Carnaval sem o brincar. Então, com o uso da tecnologia, a gente proporciona essa experiência sensorial e brinca quem quer.
Gringo Cardia – Curador